segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Manhã de Lisboa

Num destes Sábados de manhã passeava com um amigo pela zona da Lapa, recém-chegado de viagem. O passeio matinal tinha por objectivo a busca de um local onde tomar um bom pequeno-almoço.

Numa rua inclinada avistava-se o Tejo – azul, que reflectia um céu limpo de nuvens. O Sol de Outono deu um ar da sua graça e Lisboa estava cheia de luz; a luz que a caracteriza e que tanto apaixona o escritor, o turista, o realizador, o pintor, o fotógrafo ou o poeta. Uma luz própria, tão difícil de reproduzir em pastéis, óleos, aguarelas... ou em palavras.
Numa rua mais abaixo duas velhotas conversavam à janela e prontamente nos saudaram com “bom-dia”. Noutra janela antiga, um velho contemplava a rua e a movimentação das gentes, acompanhado por um bichano malhado a preto e branco que balançava a sua cauda peluda, deliciado bebaixo do Sol.

Numa rua mais abaixo, encontrámos um pequeno café. Balcão alto de mármore e mesas antigas de madeira. Um cheiro a torradas e café povoavam o ar e a Dª Augusta, de sorriso aberto, baixa, roliça, despachada e bem-disposta, perguntou o que iríamos querer.

Ali, as torradas são em pão de forma, cortadas generosamente... e com muuuuuita manteiga...
Atrás do balcão, um rádio em berros um pouco dissonantes, por estar mal sintonizado.

Algumas pessoas do bairro cumprimentavam Dª Augusta da porta, outras carregavam sacos de compras e entravam para perguntar do seu filho e netinhos. Lá fora ouvia-se a flauta do amolador, que adivinha chuva, como costuma dizer a minha avó. Mas neste dia, o ditado não se aplicou, pois o dia estava lindo. A Dª Augusta ía atirando algumas migalhas de pão no passeio, que logo se encheu de pássaros e pombos. Que grande rebuliço! Outra senhora entrou com a neta pela mão e adivinhou-se amena cavaqueira. Uma azáfama que só visto!
Saímos já com os estômagos reconfortados. Na rua ouvimos o pregão de uma senhora que carregava hortaliças para venda de porta a porta, aplicando o princípio de venda do produtor directamente ao consumidor.
Um velhote pintava as janelas de madeira, com a tinta antiga já rachada pelo Sol.

Passeámos entre as ruas e, por momentos, pareceu que o tempo parou. Através de um qualquer vórtice temporal (que poderia ser explicado num filme de ficção científica), fomos transportados a todos os filmes que nos inundam a memória, em que Lisboa se mostrava a preto e branco, em que existiam varinas, ecoavam pregões pelas ruas e os miúdos brincavam ao pião no meio da estrada. Os cantos e recantos são deliciosos e o cheiro dos almoços que se preparavam já se sentiam no ar. O vento embalava a roupa nos estendais por cima das nossas cabeças e alguns miúdos brincavam com as bicicletas.

Sem dúvida, Lisboa ainda guarda encantos de outros tempos que devemos ajudar a preservar – mas primeiro temos de os (querer) conhecer. Lisboa não parou no tempo, mas continua menina e moça. Ainda ecoam alguns pregões e os seus seios continuam a ser as colinas. Só já não existem varinas.


(Este texto foi publicado num dos primeiros números da revista Blue Living - revista de compra obrigatória!!)

2 Comments:

At terça-feira, fevereiro 14, 2006 12:15:00 da manhã, Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

Também me lembro de Lisboa noutras manhãs da minha vida. São farrapos de memória que rodopiam no ar como os piquérrimos flocos de neve a que assisti nos meus seis anos. E agora teimaram em vir, de novo, tirar-me da letargia a que a gente se vai acostumando. As donas augustas do meu bairro teriam outros nomes, mas eram de sorriso aberto, baixotas e, para além de outros atributos, tinham o condão de atrair a vizinhança para um papo breve no começo da manhã, atiçado pelo cheirinho das carcaças quentinhas da padaria. A vida do bairro, onde não havia o azul do tejo, mas sim o verde do monsanto, fazia-se do vai-vem entre a leitaria, a mercearia, a padaria, a peixaria, a capelista e o lugar. Como se todo um

 
At terça-feira, fevereiro 14, 2006 12:27:00 da manhã, Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) said...

um "grande espaço" tivesse vindo para a rua espalhar-se ao ar livre. Os amoladores vinham mais para a tardinha, como a carroça do saloio, o azeiteiro, e os vendedores de língua da sogra. Na minha rua, todos os balcões eram altos. Depois cresci, foi noutras ruas, e eles foram-se ajustando à minha altura. Fui deixando de ver os velhotes a enrolar tabaco nas mortalhas e a contar histórias do tempo do Sidónio. Desapareceram as searas onde brincava (aos médicos, com as colegas da primária). Agora Lisboa é um arredor de qualquer coisa. Ainda passam águas no Tejo. Beijos, Cat.

 

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