segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Para ser Onda...

Sofia.
Maria Isabel tinha já decidido que o seu primeiro filho, caso fosse menina, se chamaria Sofia. Se fosse menino, seria João Manuel, como o seu avô. Mas João Manuel só viria mais tarde, 2 anos depois de Sofia. Sofia era um bebé rosado e bonito. Maria Isabel adorava sentir-lhe o cheiro. Pegando nas suas pequeninas mãozitas, tentou adivinhar-lhe o futuro. Sentiu um aperto no coração e segurou uma lágrima teimosa quando pensou em sua mãe. Como teria gostado de conhecer Sofia. A sua mãe sempre a criou com grandes dificuldades, a si e às suas duas irmãs. Levava todo o santo dia a amassar pão. Teresa, a padeira, tinha a fama de bruxa e outras coisas que tais. Todos acreditavam ser humanamente impossível todo o pão que amassava. Não havia nas redondezas outra padeira que amassasse tanto como ela. E passava todo o santo dia em frente ao forno, alimentando-o ininterruptamente a esteva. Colhia as estevas secas de manhã bem cedo, antes da primeira galinha despertar. Durante todo o dia o ar era perfumado com o cheiro bom da esteva quando arde. Diziam na aldeia e redondezas que Teresa, a padeira, tinha um espírito, um fantasma, que a ajudava a amassar tanto pão, pois era impossível amassar tanto assim. Teresa anuía e bem sabia que esse espírito existia; o espírito de ter 3 filhas para criar. Sozinha. Era esse o seu espírito. Abandonada pelo marido e depois rejeitada pela família, por não ter sabido cuidar da casa e ser pouco submissa. Teresa era dona de uma forte personalidade. Demasiado forte, para uma época em que o papel da mulher não deveria ir além do saber subjugar-se ao seu marido. Teresa nasceu fora da sua época e nunca teve feitio para isso e menos ainda para desistir ou deixar de se entregar a uma batalha de alma e coração. A Maria Isabel e suas irmãs nunca faltou nada de comer ou vestir, mas tiveram que se habituar a viver com dificuldades e sem qualquer tipo de luxo. Com o passar dos anos, Teresa, que passou a amassar pão apenas para sua casa, foi-se tornando não só respeitada, mas admirada por todos. Os homens, não querendo demonstrar, sempre se intimidaram com a sua presença. Teresa pescava, caçava e matava cobras só com as mãos. Por duas vezes isso aconteceu. E homens da aldeia assistiram. Teresa valia por todos eles. Eles bem o sabiam.
Mas ... Sofia. ..
Sofia herdou da avó todo esse calibre, essa forte e vincada personalidade de quem nada teme e tudo enfrenta. Com uma particularidade: a Sofia foi permitido sonhar. Na sua vida não houve espaço para grandes dificuldades. Não se cansava de ouvir, repetidas vezes, as histórias da avó Teresa. Sentia uma tristeza grande por não lhe ter sido dada a oportunidade de a ter conhecido. Sofia tornara-se uma menina-mulher muito bonita. Constantemente assediada pelos rapazes, mas Sofia não queria saber de nenhum. Apaixonara-se numas férias por um francês de grandes olhos azuis e nunca mais o esqueceu. Amores de Verão. Ficam enterrados na areia. Sofia passava horas na praia, em longas conversas com o Mar e sempre que olhava o seu azul, encontrava os olhos azuis que não mais esquecera. Maria Isabel nunca percebeu o que Sofia e o Mar tanto tinham para conversar, mas achou que isso era lá entre eles e nunca fez grandes perguntas. Mesmo quando Sofia chegava tarde para jantar, por se perder nas horas. O pai ralhava, mas os olhos de amêndoa e doces de Sofia desarmavam qualquer um. E era com o Mar que se perdia, observando-lhe as ondas, enquanto o vento lhe afagava os longos cabelos escuros que iam dançando para para lá e para cá. O Vento tinha pena de Sofia e o Mar agitava-se de júbilo cada vez que ela aparecia. Parecia bruxedo, diziam-lhe os amigos. Mal aparecia na praia, logo se levantava uma ventania e o mar agitava-se de forma tal, que todos se íam embora. E Sofia ficava com o Mar e com o Vento só para ela. Apetecia-lhe abrir os braços e voar…. Várias vezes implorou ao Vento. Mas ele nunca deixou. Sem mais, resignava-se a contemplar as ondas, que se íam enrolando, enrolando, acabando por se desfazer em espuma. E o Mar ía-lhe murmurando baixinho tudo o que só Sofia entendia. Como Sofia desejava ser onda… Sofia nunca percebeu, mas o Mar apaixonara-se por ela. E Sofia continuava, dia após dia, a contemplar o Mar. E desejava ser onda… Até aquele dia, num esgar em que Sofia fitou Orionte, no Céu, e este lhe sorriu. Nunca Orionte lhe havia sorrido antes. Fechou os olhos e desejou ter um sonho bom. Sentiu um arrepio correr-lhe todo o corpo e a sua cabeça andou à roda. Sentiu-se a rodopiar e a enrolar, enrolar… Sentiu o azul e um gosto salgado. Sentiu-se espuma... como uma onda...

1 Comments:

At quinta-feira, fevereiro 09, 2006 11:47:00 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Uma história para ti tb, Cat.

Natal lá longe

Já era dia quando ela acordou…o vento soprava e abanava as vidraças daquela janela que transmitia imagens sem graça. Despertado o ouvido, sobressaía o ronco habitual do ruído dos escapes e a algazarra dos andantes tresloucados no seu vaivém diário e rotineiro. Ela sentiu-se feliz. O seu dia iria ser de liberdade, de desapego, de descoberta de um desconhecido, não imaginário, bem real no espaço e no tempo.

Partiria para longe e consigo levaria alguns dias de companhia...muitas horas de calendário, muitos mais minutos de ansiedade na expectativa daquele encontro desconhecido, na esperança de VIVER…sim viver, porque a sua vivência diária mais não era do que um embrulho de ilusões mascaradas de progresso…

À medida que o carro se afastava da urbana azáfama matinal, o pensamento espraiava-se na lânguida e calma serenidade da paisagem, como que a implorar eternidade num ameno abrigo de interioridade, desprovido de ambições mesquinhas, apanágio dos exaltados lutando desesperadamente na procura do nada, do efémero, correndo em aceleração perpétua contra a corrente da vida.

A luz brilhante do sol era-lhe companheira…a música surgia do sibilar das aves que planavam acompanhando o ondular dos montes resplandescentes de verde e castanho contrastando com a imensidão do azul que os sobrepunha, certas da inexistência dos metálicos canudos sonantes, que explodem em morte.

Saídos de chaminés envelhecidas pelo tempo, fumos leves rodopiavam em espiral, indicadores dos preparativos para a festa. Cheiros petisqueiros misturavam-se no ar com o da madeira a arder nas lareiras há muito acesas. As gentes, essas, mantinham-se ausentes da paisagem, não fosse o frio, afiado e penetrante, pregar-lhes a partida da doença.

Ela subia, descia, olhava ao redor levada pela beleza circundante, agreste na simplicidade, forte no desígnio de prender o viajante, enquanto o sol continuava a sorrir como cúmplice do seu extâse. Repentinamente, saído das entranhas do mato ondulante de cor outonal, dois olhos protuberantes encimados por longas e peludas orelhas espetadas fixavam o instrumento rolante…ela parou e ficou…queria ter a certeza de que era imagem real e, por isso, beliscou-se. Não tentou sequer um movimento de saída, no receio de perder essa realidade tão bela quão indefesa, tão chamativa à sensação do equilíbrio próprio da Natureza… olharam-se no infinito do tempo, sem pressas, esperando o momento da separação, o fim do cumprimento…acabada a comunhão de uma linguagem muda e sem o adeus habitual, ele saltou em socalcos para o seu mundo escondido e ela partiu, rodando.

Tão distraída estava com a catadupa de acontecimentos daquele dia que nem sentiu o alerta esfomeado do seu estômago senão quando, pendurados numa umbreira de porta de restaurante manhoso, visualizou um amontoado de chouriços gordos e suculentos. Aí, arregalou bem o olho, empinou a narina, salivou profundo e sentiu a água crescer-lhe na boca. Travões a fundo..saiu, apressou o passo não fosse alguém fechar a porta, somente entreaberta. Espreitou, como pedindo autorização para entrar, ouvindo de imediato uma voz dizer..."entri menina entri que tá muito frio"…aquela saudação …m e n i n a…levou-a à longínqua infância há tanto esquecida, mas logo se recompôs no presente para concordar com o frio…e do frio passou à fome e da fome passou à mesa e na mesa encontrou um pão a cheirar a pão uma sopa a saber a sopa couves a saber a couves carne a saber a carne, tudo verdadeiro sem artifícios de sabor, acabando no café de outros mundos longíquos. Um dom divino, tão divino como a conversa tida com o autor da menina, Homem rijo, de pele engelhada, onde cada ruga vincava dureza vinda da mocidade, mantida acesa na memória... sem revolta……

"…….isto agora não é nada, menina…é uma graça de Deus...no tempo em quéra moço, candávamos descalços ápanhar lênha e que levávamos as botas às costas pra não as rebentar..isso é queram tempos defíceis..agora têm tudo, mas inda bem, caqueles tempos eram de fome e amargura…no natali a minha mãe, ca tenha lá Deus em descanso, cando a vida tava mais de feição, matava uma galinhita pra fazer a canja que dava pra todos…éramos oito irmãos..mas tudo se criou, menina…tudo se criou…com a graça do Senhori…muito unidos…agora andam todos à pancada, sem saberem pruquê..pru causa duns tostões…este mundo anda predido…..."

e mais se falou, se recordou, sempre como comparação o presente, presente esse que se ia velozmente estendendo pela tarde fora.

Já o sol ia baixo e uns bons kilometros estavam por percorrer. A emoção instalada na alma impedia-a da aguçada atenção necessária ao momento. Mas tinha de seguir e partiu com aquela sensação de paz há muito não sentida, talvez só no tempo em que era realmente Menina, em que o mundo lhe sorria e impunha um cunho de esperança.

Na plenitude do espaço e do tempo rolou para o destino tido como certo, lá longe, onde as gentes chamam o fim do mundo, embrulhado entre serras, vales, rios e memórias de um passado muito distante, pré-histórico até, assinalado agora com pompa e circunstância para turista visitar, onde os ventos uivam ferozes como, também eles, implorando aos deuses tempos melhores.

Já o dia finalizara quando finalmente chegou. As luzes natalícias brilhavam no seu explendor torneando cuidadosamente os edifícios eleitos, quebrando o breu da noite. Nada se movia no horizonte próximo, tudo era silêncio e recolhimento. Sentia-se os preparativos da consoada. A árvore colorida e iluminada e um sorriso prasenteiro esperava-a no hotel fragilizado de agitação. Normal na época, pensou, e sorriu também em agradecimento.

Devagarinho, percorreu os corredores que a conduziriam ao espaço que iria ser seu, cumplice das suas alegrias, tristezas, pensamentos, durante aqueles dias em que alguns Homens obrigatoriamente obrigam a ser momento de festa.

Entrou e iluminou…algum tempo passado, adormeceu…………..cansada…………em PAZ.


Um beijo fofo e longo de Amizade e Ternura para a tua esplêndida inciativa que agora começaste

 

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