segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Domingos, Vendedor de Rosas


Esta foi uma história, das muitas que vivi em S. Paulo.
Durante o tempo em que vivi nessa cidade - a qual estranhei e depois entranhei - esta foi uma das muitas histórias que enviei por mail para os meus amigos e familiares, que assim me íam acompanhando.
Das coisas que mais tocaram foi descobrir, no meu regresso, que a minha família se reuniu alguns serões, a lêr as histórias das muitas aventuras que lhes fui enviando.


Em São Paulo é comum encontrarmos vendedores de rosas com as suas bancas. Dois cavaletes e uma tábua em equilíbrio. E um everest de rosas: brancas, vermelhas, rosas e laranjas – estas são as minhas preferidas.
Caminhando sempre a pé até ao local de trabalho, todas as manhãs passei pelo Domingos e pela sua banca. Todas as tardes também, no final do dia.

Decidi alegrar com vida e côr o apartamento e a primeira vez que parei para negociar com o Domingos a disputa foi renhida. A meia dúzia das rosas tinha um preço excessivo e as rosas um pouco murchas. Principalmente as laranjas, as que mais cobiçava. Domingos lançava números de um lado, eu do outro, … até que fui peremptória ao afirmar que pelos preços que ele pretendia não levaria tão poucas rosas. Pior: as rosas laranjas estavam a ficar murchas. E ainda: que raio de rosas eram aquelas que não tinham cheiro? Aqui Domingos quis convencer-me que as suas rosas cheiravam maravilhosamente bem…
Propôs um lindo bouquet por um preço bastante razoável. Bastante, volto a repetir. Apenas dez reais. Cerca de duas dúzias de rosas.
Pelo mesmo preço tinha começado por oferecer apenas 6...
O apartamento encheu-se de côr e Domingos tinha misturado rosas amarelas… ah!, estas tinham cheiro!

Nas manhãs seguintes Domingos sempre me presenteou com um “bom dia”, no seu largo sorriso de poucos dentes. Sempre retribuí. Mas o meu sorriso com dentes.
Poucos dias depois comprei novamente rosas. Entrámos numa espécie de acordo comercial. Por dez reais o Domingos compunha um belo bouquet. E este ritual foi-se repetindo.

Os sorrisos matinais e no fim do dia eram cada vez mais rasgados, bem como mais demoradas eram suas conversas.
É que Domingos sempre fala da vida dura que tem. Nunca conheceu outra. A sua vida sempre foi difícil, nasceu numa família de muitos irmãos, no Nordeste. Como a maior parte dos nordestinos, partiu em busca de uma vida melhor na Cidade Grande.
Pelo caminho e na infância, soube o que foi passar fome.
Mas tem orgulho no seu trabalho honesto, dá para viver muito modestamente, mas já ninguém passa fome. O filho andou na escola e é o seu grande orgulho. Faz parte da equipa da “Portuguesa” e caso não fosse bom... certo era que já o tinham retirado da equipa! , como ele refere, dando grande ênfase a este final.
Sonha com o dia em que o filho será um grande jogador de futebol... quem sabe um dia alguém não esteja atento ao seu talento e o leve para um grande clube. Um amigo de Domingos anuiu, abanando a cabeça, parece que o rapaz joga mesmo bem.

E enquanto Domingos fala no filho e nos sonhos que tem para ele, os seus olhos rodopiam e enchem-se de luz, juntando à conversa os seus rasgados e desdentados sorrisos.
Cada vez tem uma história diferente da sua vida para contar. E eu gosto de ouvir.
Por vezes passo no meio da multidão e vejo Domingos atarefado a borrifar as suas rosas. Quando penso que não me viu na sua azáfama, chama por mim e atravesso a rua. Mostra-me rosas e quando lhe digo que não é dia de comprar rosas... prepara um bouquet, embrulha-o, coloca-lhe um laço... e oferece-me. Elogia o meu sorriso e diz-me que também sou uma rosa como as que vende. Fico sem jeito. (Tem uma boa cantiga...)

Ainda não percebi, afinal, o que ele ganha com as rosas que me vende... oferece-me tantas rosas como as que compro.
Agora é ele que me arranja os pés das rosas, limpa os espinhos e repetidas vezes me dá as indicações de como tratar as rosas. As indicações mais importantes: não as colocar perto de ventiladores ou janelas abertas e adicionar açúcar à água. Cumpro à risca!

Domingos tem uma rosa no lugar do coração. E sem espinhos. É gente boa, simples e marcado pela vida. Daquelas pessoas em que cada ruga do rosto conta uma história diferente.
Admiro como com tão pouco sabe dar e partilhar. E não me refiro só às rosas, mas às histórias que me conta e que tanto gosto de ouvir.

Por todas as rosas bonitas, Domingos é uma delas também.


E amanhã é dia de comprar rosas.

6 Comments:

At quarta-feira, fevereiro 08, 2006 10:51:00 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Numa floresta de cimento bem cinzento mas com a cabeça numa floresta verde espreitou uma rosa. E afinal não é só o Domingos que dá rosas sem pedirmos.
Antonini.

 
At quinta-feira, fevereiro 09, 2006 5:39:00 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A Senhora, vendedeira de flores

Sempre vestida de preto, em lembrança de alguém partido, aquela mulher de pele enrugada, olhos ladinos e mãos crespadas sorria sentada na esquina daquela rua. Vendia a quem passava as suas flores de cores penetrantes com aquele jeito natural de quem nada mais tem para dar senão a frescura das suas flores. Para mim, não eram rosas, nem cravos, nem tulipas, nem malmequeres que meus olhos captavam mas a simplicidade da sua existência reflectida naquela deslumbrante e deveras colorida natureza.
Por ela passava todos os dias a caminho do emprego e, mesmo que nada comprasse, sorria, criando entre nós laços de entendimento perfeito, que, com o passar dos tempos, anos até, suas mágoas, desgostos e amarguras me confiava entre lágrimas caídas de tanta revolta escondida. Alegrias poucas eram as que tinha para contar, salvo a existência de uma neta, a quem dedicava sua vida, teimosamente firmada no desejo de amar. Segredava-me baixinho os tormentos da sua criação, o abandono da filha desaparecida em mundos obscuros de vidas desassossegadas, o afastamento de seu homem nas funduras de uma mina longínqua na procura de uma vida melhor, que não teve, e lhe trouxe morte prematura...ai lamentos que de nada servem, porque nada mudam, porque nada revivem...são apenas desabafos a aliviar o coração já fraco de tanto suportar vida de desencanto.
Mas sua neta, resplendor dos seus olhos,fada madrinha de seus poucos encantos, era para ela a razão de existir. Menina pacata, empreendedora de seus deveres, sua única companhia na solidão da vida. Mas ela não a abandonaria, olharia por ela e seria ela agora e para sempre a concretizar os desejos e ambições que na filha tinha posto...mas pensava..filha de filha a dobrar é o encanto..e os seus olhitos, cobertos de uma nuvem brilhante, acompanhavam o sorriso aberto que de seus lábios saía, como se o mundo a partir desse momento virasse bola de luz a iluminar ainda mais o colorido das suas flores.

E ela sabia também confidências minhas. Sabia que aquelas flores arranjadas por ela eram para a minha mãe. E que para a minha mãe eu queria o melhor, o mais bonito, o mais resplandescente, mesmo que de florinhas silvestres se tratasse. O carinho e o amor com que as preparava simulava um aconchego a bébé. Seria o desejo escondido de as receber também? talvez, sei lá. Entre os atados das flores, acabei por saber sua data de nascimento. Por um acaso pressentido, pouco distanciava a sua da minha. Compreendi então a empatia que sentíamos. Coisas havia que não se diziam, adivinhavam-se por si e eu não queria que ela adivinhasse a minha. Por isso disfarcei a emoção de me saber falando com uma irmã gémea de signo, para poder levar a bom termo a minha intenção. Passavam-se assim os dias em troca de saudações matinais e sorrisos e eis que o seu dia chegou. Ela continuava sentada naquela esquina de rua, vestida de preto com cara enrugada, enquanto seus olhos vagueavam no vazio esperando que, naquele seu específico dia, qualquer coisa de diferente acontecesse. Parei como se fosse o dia habitual de paragem.

- Então hoje vai levar as flores para a maezinha?

- Sim hoje queria um ramo com as flores mais frescas que tiver.

- São todas, fui hoje buscá-las de manhãzinha à praça.

- Então qual acha que leve? hoje deixo-a escolher

- São todas lindas, mas ali aquelas
rosas laranjas são de primeira.

- Então se acha, arranja-me uma dúzia delas? Mas olhe que quero o ramo bem aperaltado mas a seu gosto. Hoje não é para a mãezinha. É para uma amiga do coração.

- Ah, fique descansada. Até tenho ali laço a condizer. Mas ainda vai demorar um bocadinho.

- Não faz mal, disse eu. Aproveito e vou tomar ali um cafezinho.

- Sim senhora.

Na pastelaria reinava o cheiro típico de bolos acabados de fazer. A especialidade eram os pastéis de nata tamanho duplo, massa estaladiça e creme guloso, faziam as delícias de qualquer papila por muito pouco gustativa que fosse. Perguntei se tinham velas de aniversário. Felizmente tinham e mandei colocar em cada pastel a vela do respectivo ano...um 6 e um 8...68 anos. Idade que já merecia descanso, mas ela, a Senhora de pele enrugada e olhos tristes, ali continuava atando flores para encanto de outros.

Saí de caixa na mão com ar descontraído e dirigi-me para ela.
Os seus olhos brilhavam de contentamento, aguardando aprovação pelo trabalho. O ramalhete estava lindo, resultado da alegria de alma com que o compôs...era para a amiga do coração da senhora que de si também era amiga.
Elogiei-o o máximo que pude até ver que seus olhos mais não podiam brilhar de contentamento. Paguei e pedi que se levantasse. Abracei-a terna e fortemente, beijei calorosamente aquela cara de pele enrugada, ao mesmo tempo que uma lágrima caía, igual aquela que agora, passados tantos anos, ainda continua a cair envolta em emoção. Devolvi-lhe o seu ramo de rosas laranjas com a caixinha dos bolos embrulhada em papel de pastelaria de bairro. Olhámo-nos fixamente agradecendo ambas os presentes dados...ela as flores e os bolos eu a amizade dedicada daquela Senhora, vendedeira de flores que não tinha nome.

E os dias assim continuaram até eu mudar de caminho. Passados tempos voltei, mas ela já não estava e ninguém me sabia dizer para onde tinha ido. Senti a sua falta e a falta das suas flores. Minha mãe queixou-se que nunca mais tinha conseguido ter flores tão lindas e tão frescas como aquelas.
E eu nunca mais tive a amizade de uma vendedeira de flores tão profunda como a dela. Resta-me a saudade, mas fica-me a lembrança.

Leo

 
At sexta-feira, fevereiro 10, 2006 9:24:00 da tarde, Blogger Masca said...

Priminha, deste cabo de mim com esta história verídica...não sei se foi conscientemente ou inconscientemente que preencheste as entrelinhas...o certo é q até me comovi com a história!!! Olha adorei!!! Beijinhos!!!

 
At segunda-feira, fevereiro 13, 2006 4:53:00 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Leo,

Acho q está na hora de arranjares um blog para as tuas histórias tb! De q estás à espera?

Bjs, Cat.

 
At terça-feira, fevereiro 14, 2006 11:39:00 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Nã é preciso, Catzinha....qdo as quiser contar, pk pedaços da minha vida são e para todos NAO são, logo as envio em papel, em mail ou as coloco aki, onde me deste a alegria de kereres k fizesse parte dos teus amigos de blog...por isso, irão de vez em qdo algumas das k, há mto, já venho escrevendo, se kiseres e gostares, claro...e tu continua tb...tdos os dias irei dar uma espreitadela ao teu blog para ir "cuscando" cada vez mais sobre ti:))bjis leo

 
At quinta-feira, março 23, 2006 5:00:00 da tarde, Blogger AJF said...

Miga

Reli agora esta história das rosas e do Domingos de São Paulo. Mais uma vez me vieram as lágrimas aos olhos. Foi uma vivência tua, que me marcou também a mim...faz-me lembrar vivências minhas...
E hoje resolvi deixar-te aqui um beijinho, e dizer-te...Obrigada amiga pela partilha.
AJ

 

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